Tolerância zero: menos crimes, mais racismo?
No ano de 1990, o número de homicídios em Nova York chegou ao recorde de 2.262. No ano 2000, esses crimes haviam sido reduzidos em mais de 70% e continuaram caindo: em 2005, foram contabilizados 540 assassinatos.A transformação do quadro da violência em Nova York começou em 1991, mas a queda acentuou-se a partir de 1994, na gestão do prefeito Rudy Giuliani, com a implantação da Campanha para a Qualidade de Vida. Sob o comando do comissário de Polícia William Bratton, o programa de segurança batizado de Tolerância Zero teve tanto êxito que, além de obter a aprovação de políticos, da imprensa e da sociedade norte-americana, mereceu elogios de diversos países europeus, asiáticos e latino-americanos. Entre seus entusiastas, estão juristas, criminologistas e sociólogos do mundo inteiro.
O Tolerância Zero baseou-se em dois eixos: o endurecimento da política de Broken Windows (Janelas Quebradas), com repressão a qualquer transgressão à lei - desde atravessar a rua fora das esquinas, jogar lixo na rua, pichação ou mendicância -, e a reorganização e descentralização do Departamento de Polícia. A reestruturação foi ampla: conceitos de gerenciamento de empresas foram incorporados, assim como tecnologias avançadas para armazenamento e troca de informações, reduzindo a burocracia. Paralelamente, iniciou-se uma forte repressão à violência e corrupção policial, com a instituição da Mollen Commission, responsável pela “limpeza” do departamento.
Desenhado pelo estrategista Jack Maple, o sistema de segurança foi baseado em quatro passos: mapeamento informatizado e ampla comunicação dos dados criminais; rápida distribuição das forças policiais; táticas eficazes de combate; e constante acompanhamento e avaliação do desempenho.
Criminalização da miséria
Mesmo tendo tido sucesso na redução da criminalidade, o programa de segurança implantado em Nova York foi alvo de muitas críticas e questionamentos. Alguns pesquisadores defendem que o fenômeno não se deveu unicamente às reformas policiais e da política de segurança, mas também a fatores sociais, econômicos e culturais, como o fortalecimento da economia e a conseqüente queda do desemprego, o encolhimento do mercado de crack e heroína e até o aumento do número de abortos.
Outros apontam o alto custo de uma política de tolerância zero para os direitos humanos: ao se “cortar o mal pela raiz”, reprimindo até as "incivilidades" que perturbam o "bom cidadão", surge um sistema repressor policial-penal que criminaliza a miséria, abrindo espaço para o preconceito racial e a brutalidade policial. Os ícones dessa crítica são a tortura do imigrante haitiano Abner Louima numa delegacia do Brooklin em 1997 e o fuzilamento do imigrante africano Amadou Diallo, em 1999.
Os dados sobre quem são os prisioneiros nos Estados Unidos corroboram esta argumentação: o relatório da Agência de Justiça Criminal da Cidade de Nova York para o ano de 2003 mostra que negros e latinos representaram 78% do total de pessoas presas, número que cresceu para 81% em 2004. Em ambos os anos, mais de 80% do total dos casos foram crimes leves ou contravenções.
Apesar das críticas, ao suceder Giuliani, o prefeito Michael Bloomberg manteve a linha dura da política de segurança, aproveitando as bases já consolidadas, e ainda a estendeu a outras áreas, como as escolas, onde foram implantadas medidas disciplinares. Com o aumento da vigilância pela política anti-terrorismo, o crime caiu ainda mais. Entre as mudanças efetuadas, destaca-se a utilização mais seletiva dos recursos, investidos em programas orientados ao controle de determinados tipos de crimes, como aqueles cometidos em áreas de maior incidência ou por pessoas reincidentes, responsáveis por um numero desproporcional de contravenções ou crimes de pouca gravidade.
Segurança não é receita de bolo
A aplicação de programas de segurança de determinados lugares em outros é vista com reservas pela advogada Florencia Fontan Balestra, mestre em direito pela Universidade de Harvard e pesquisadora em temas de violência e segurança pública do Viva Rio. Para ela, não existem modelos policiais ideais e universais. “Por exemplo: o Tolerância Zero parte da premissa de que qualquer violação legal, seja grave ou não, como urinar na rua ou atravessar fora da faixa de pedestres, habilita a policia a parar ao suspeito, revistá-lo e questioná-lo. Isso seria impraticável na maioria dos países latino-americanos. É inconcebível criminalizar determinadas condutas enraizadas culturalmente”, afirma.
A pesquisadora acredita, entretanto, que a análise comparada de diferentes modelos policiais ajuda a obter ensinamentos úteis para a definição de sistemas mais apropriados a cada realidade. “O sistema eleito deve adaptar-se à particular organização da cidade, à cultura, aos costumes da sociedade e à tradição histórica em matéria de segurança”, explica.
A opinião de Florencia é partilhada pelo professor de direito, ciência política e justiça criminal do John Jay College of Criminal Justice da Universidade da Cidade de Nova York, Eli B. Silverman, autor do livro NYPD Battles Crime: Innovative Strategies in Policing (Departamento de Polícia de Nova York combate o crime: estratégias inovadoras em policiamento). Para ele, um sistema de segurança não é uma receita de bolo, que se possa copiar com exatidão. “Um modelo pode ser bem sucedido com adaptações que levem em conta a natureza do departamento de polícia local e da sociedade”, afirma. Ele dá como (mau) exemplo o caso da cidade do México, que contratou a firma de consultoria de Rudolph Giuliani para remodelar o sistema de segurança da cidade e obteve uma cópia do projeto de Nova York, que não funcionou, já que as realidades eram diferentes.
Estado policial-penal X direitos humanos e investimentos no social
Apesar do sucesso na redução da criminalidade nos últimos 15 anos, o programa de segurança implantado em Nova York foi – e continua sendo – muito criticado.Um ponto chave das críticas é a construção de um Estado policial-penal em detrimento de investimentos na área social e com conseqüências marcantes na área dos direitos humanos.
Entre 1991 e 2001, o Departamento de Polícia de NY cresceu 45%, mais de três vezes a média nacional. Se, por um lado, o aumento do efetivo policial foi uma medida eficaz contra a criminalidade, por outro, levou à redução dos investimentos para contratações no setor de serviços sociais e a um aumento das violações aos direitos humanos.
A repressão a condutas definidas como “incivilidades” e a criação de uma Unidade de Luta contra os Crimes de Rua levaram a um aumento significativo de prisões por pequenos delitos, abrindo espaço para racismo e brutalidade policial: em dois anos, mais de 45.000 pessoas foram presas como suspeitas, sendo 37.000 casos sem motivo justificável. Outros 4.000 processos foram arquivados por falta de provas.
Um agravante é a brutalidade com que as prisões às vezes são feitas. Como o assassinato, em 1999, do imigrante africano Amadou Diallo, de 22 anos, morto com 42 tiros, por integrantes dessa unidade policial, gerando uma série de protestos contra a política do prefeito Giuliani. Protestos que, por sua vez, foram tratados como caso de polícia e reprimidos. O caso Diallo não era o primeiro exemplo de brutalidade policial: em 1998, o imigrante haitiano Abner Louima havia sido submetido a torturas com requintes sexuais e escatológicos em uma delegacia do Brooklin.
As acusações de racismo têm comprovação científica: quase 80% dos homens jovens negros e latinos de Nova Iorque foram presos e revistados ao menos uma vez. Em probabilidade acumulada durante a vida, um homem negro tem mais de uma chance em quatro de passar ao menos um ano de prisão, um latino, uma chance em seis, e um branco, apenas uma chance em 23. Mais de um terço dos negros que têm entre 18 e 29 anos nos Estados Unidos está sob vigilância do sistema policial-penal – seja preso ou em liberdade condicional.
O relatório da Agência de Justiça Criminal da Cidade de Nova York para o ano de 2003 mostra que negros e latinos representaram 78% do total de prisões, número que cresceu para 81% em 2004. Em ambos os anos, mais de 80% do total dos casos foram crimes leves ou contravenções.Na opinião de Florencia Fontan Balestra, com a expansão do já grande Estado Penal, o direito penal acaba sendo usado como um disciplinador das classes consideradas mais “incivilizadas”, desordenadas ou diferentes – geralmente, as minorias negras e latinas. “A tese não é nova. Michel Foucault, em seu famoso livro “Vigiar e Punir”, já falava sobre a vigilância normalizadora e a utilização dos cárceres como controle social para disciplinar os pobres nas novas leis impostas pela revolução industrial. O sociólogo Loic Wacquant estende essa associação ao estado neoliberal atual. Existe uma corrente dentro da criminologia, a criminologia crítica, que há anos vem travando uma luta contra o aumento do aparato penal e defendendo teorias de Direito Penal Mínimo e Abolicionismo”, diz.
Outro aspecto questionado por alguns pesquisadores é a atribuição da responsabilidade pela queda da criminalidade unicamente à política de segurança pública. Criminalistas como Andrew Karmen, autor de New York Murder Mystery: The True Story Behind the Crime Crash of the 1990's, defendem que o fenômeno não se deveu unicamente às reformas policiais e da política de segurança, mas também a fatores sociais, econômicos e culturais, como o fortalecimento da economia e a conseqüente queda do desemprego, o encolhimento do mercado de crack e heroína e até o aumento do número de abortos em décadas anteriores.
Para o professor de Criminologia e Justiça Criminal da Escola de Direito do King's College London Benjamin Bowling, a relação entre o policiamento ostensivo e a queda da criminalidade foi circunstancial, e a sua transformação em fato consumado se deve à mídia e aos políticos.
Para o criminologista, que desenvolveu pesquisas em conjunto com especialistas da John Jay College of Criminal Justice da Universidade da Cidade de Nova York, outras mudanças no contexto social devem ser levadas em conta. Em seu artigo The rise and fall of New York Murder – Zero Tolerance or Crack´s decline?, publicado no British Journal of Criminology em 1999, Bowling destaca a importância da redução do mercado de crack e da rejeição, por uma nova geração de jovens, às drogas e às armas. “Quando o crime aumenta, ninguém se responsabiliza. Mas quando ele cai, todos querem levar o mérito”, resume Bowling.
Estatísticas computadorizadas
Dentre as diversas ações que levaram à redução do crime em Nova York, destaca-se o Compstat, sigla paraComputerized Statistics, uma nova abordagem de comunicação baseada no registro eletrônico e análise de dados criminais e na troca semanal de idéias entre representantes da cúpula da Polícia, investigadores e policiais que agem nas ruas. Conhecidas como “Encontros de Estratégia Criminal”, as reuniões do Compstat eram marcadas por discussões intensas sobre os contextos dos crimes e os planos de cada comandante de distrito para combatê-los.
Retirado:https://comunidadesegura.org.br/